O que torna o mundo menos violento é aprender com a dificuldade do outro.
Entrevista com LaÃs Vanessa Carvalho de Figueirêdo Lopes*
Qual é o termo politicamente correto para se reportar às pessoas com deficiência?
LaÃs – O termo “portador de necessidades especiais” foi uma expressão que ficou durante um bom tempo na pauta e começou a ser descartada porque o pleito das pessoas passou a ser o reconhecimento como de fato elas são, sem eufemismos, pois, na verdade, todos somos portadores de necessidades especiais e com esse termo a gente acaba falando tudo e não falando nada… O termo hipossuficiente veio do Código de Defesa do Consumidor, que serve para inverter o ônus da prova, já que uma pessoa fÃsica estará litigando com uma pessoa jurÃdica de grande porte. Foi sugerido por Celso Russomano que teve uma participação na elaboração da lei de defesa do consumidor e quis transpor isso para a legislação com deficiência, o que foi repudiado pela sociedade.
A expressão “pessoa com deficiência” foi a mais feliz por focar na pessoa em si como sujeito titular de direitos e adjetivar que ela tem uma deficiência, que apesar de ser uma palavra forte, acaba também sendo uma palavra mais popular. Na Convenção se discutiu esse assunto, sendo que a palavra em espanhol descapacidad foi considerada por traduzir melhor a questão do modelo social, já que como a limitação funcional tem a ver com meio ambiente, ela “descapacita” o ser humano em função do meio em que ele se encontra. Na verdade, a pessoa tem capacidade e só não consegue externar no meio em que está inserida. Essa seria uma palavra que nós poderÃamos pensar em aplicar no Brasil, mas há todo o processo cultural para essa tradução. Não temos a palavra no nosso vocabulário e para criá-la precisarÃamos de um estudo aprofundado. Acho importante mas nesse momento polÃtico se avaliou que querer mudar a denominação seria um custo muito alto. A tradução oficial é então pessoa com deficiência.
Você mencionou que existem várias lÃnguas de sinais, isso significa afirmar então que a linguagem de libras não é universal?
LaÃs – Exato. Cada paÃs tem a sua linguagem porque tem muito a ver com os costumes e emoções. Outro dia, estava numa palestra na Reatech (feira de reabilitação e tecnologia voltada para pessoas com deficiência) em que um surdo-cego indiano falou para uma platéia bastante eclética e todo mundo entendeu e acompanhou seu discurso em tempo real. Como ele fala a lÃngua de sinais americano, o que ele dizia era traduzido para o inglês. Do inglês era traduzido para o português, que era passado para a lÃngua brasileira de sinais e havia mais a legenda em tempo real. É muito bom perceber que uma pessoa como ele pode ser compreendida por todos e que, em tempos atrás – ou mesmo hoje dependendo das oportunidades que tivesse – poderia estar confinada numa cama.
Com a tv digital, temos a legenda em português (close caption). No futuro breve teremos a opção de janela de libras na maioria dos programas e filmes. Imagino que poderemos aumentar ou diminuir a janela, que poderá ser dividida em dois, metade com a programação normal de um canal de TV e metade com a tradução da linguagem de LIBRAS. Para as pessoas com deficiência auditiva será um novo mundo.
Por fim, gostarÃamos que você tecesse comentários sobre a situação das crianças com deficiência e em que estágio a educação inclusiva nas escolas se encontra.
LaÃs – Isso já é uma disposição de obrigação porque a educação já deve ser inclusiva por princÃpio, tanto pela Convenção, como por disposição da Constituição Federal e por leis posteriores. O MEC acabou de editar em janeiro de 2008 uma polÃtica nacional da educação especial com a perspectiva da educação inclusiva. Não há como extinguir as escolas especiais do Brasil, até porque nem é isso que se pretende. O acúmulo das escolas especiais é importante para poder ofertar uma possibilidade de real inclusão, o que engloba uma série de tecnologias e dinâmicas a serem desenvolvidas e aprimoradas. O que se pleiteia hoje é que, independentemente do grau da deficiência, não se exclua a possibilidade de convÃvio social da pessoa, e no caso em questão da criança. Essa é a primeira caracterÃstica que a gente tem que pensar, já que há diferentes graus de aprendizagem. Quanto a esse aspecto, a primeira idéia que vem à mente é a de que os professores não estão preparados para lecionar para crianças com deficiência. O que de fato é uma verdade, mas, aÃ, vem a pergunta: Que mãe está preparada para ter um filho com deficiência? Não existe essa preparação. Da mesma forma que não existe professor preparado para lidar com um aluno perverso com impulsos violentos, são situações de uma diversidade que nunca será homogênea. As pessoas não são exatamente iguais, e todos nós devemos saber lidar com isso. Segundo dados do último censo do IBGE de 2000, 14,5% da população brasileira têm algum tipo de deficiência, o que equivale dizer que são 24 milhões de pessoas com deficiência.
Se um aluno sabe fazer leitura labial, o quê ele requer? Requer que o professor fique falando de frente para ele, que o professor não vire de costas e continue falando. Essa mudança não é totalmente irreal. Às vezes o aluno precisa de um intérprete de LIBRAS. Para aprender sua lÃngua, terá que participar de aulas com todos os alunos para desenvolver sua socialização e ter aulas especÃficas de LIBRAS também para desenvolver seu cognitivo de comunicação. Um cego vai precisar ter um material em braile ou digitalmente acessÃvel para poder compreender tudo que está sendo estudado.
A preparação do professor tem que ser um investimento incentivado pelos Governos, no âmbito federal, estadual e municipal, o que de fato tem crescido. Mas tem que ser um investimento pessoal do professor, investimento institucional da escola de acreditar na potencialidade do ser humano, de que todas as pessoas são capazes de aprender e de ensinar porque é a diversidade que acaba ensinando o próximo. A pessoa cresce com um diferencial na medida em que sabe que pode apoiar alguém próximo com dificuldade. Temos um mundo menos violento quando estamos lidando com um ambiente de paz.
O Ministério Público tem tido uma atuação significativa na inclusão das crianças com deficiência nas escolas, pois tem feito investidas jurÃdicas que torna a inclusão uma obrigação legal.
O fato das escolas públicas estarem se adaptando a novas diretrizes é um bom exemplo. Muitas vezes, é nas escolas privadas que a gente vê uma discriminação velada. Para se comprovar o crime de recusa da matrÃcula em função da deficiência é preciso ter documentos e testemunhas, o que é difÃcil e, por isso, não é comum se colher um conjunto de provas robustas de que houve discriminação no caso concreto. Essas escolas sugerem aos pais que a melhor educação para o filho com deficiência é em escolas especializadas. A escola nunca diz que não aceita a criança com deficiência.
Por isso, é muito importante o papel da famÃlia. Os pais têm a obrigação de colocar a criança com deficiência na escola e lutar por seus direitos. Muitas vezes, o que ocorre é que a famÃlia passa a ter vergonha de ter um filho com deficiência… Muitas vezes, as famÃlias temem que a criança venha a sofrer na escola. Mas o fato é que os pais não têm esse direito! Eles não podem impedir que o filho venha a enfrentar os obstáculos da vida social, tal qual ela é… O empoderamento dos pais de acreditar que é possÃvel que as crianças possam se desenvolver, crescer como adultos com suas limitações e potencialidades, tem surtido um efeito mais que substancial. Os pais que acreditam na inclusão têm ajudado na luta contra a resistência.
Cabe ao Poder Público o papel de promover a educação inclusiva, em parceria com a sociedade civil, para fazer com que essas crianças que estão em casa possam acreditar que é possÃvel e viável o convÃvio com as demais, que não tem nenhuma deficiência. Segundo dados da ONU, apenas 2% das crianças com deficiência vão à escola no mundo….
Primeiro é preciso tirar a criança de casa, levar à escola e não esmorecer com as dificuldades encontradas. Há muita resistência no meio do caminho e é muito fácil desistir e deixar a criança numa situação de sobrevivência e não vivência em si. É preciso quebrar os paradigmas de todos esses espaços para conseguir chegar à igualdade de direitos.
Temos algumas cidades com experiências positivas em determinadas áreas da inclusão. Osasco é uma delas, que a partir de um convênio com a Associação Mais Diferenças está conseguindo implantar um Programa de Educação Inclusiva muito bom e completo, que envolve a formação dos professores, gestores e servidores em geral que atuam como agentes de ensino nas escolas; a comunicação como direito à informação sobre os temas correlatos; a acessibilidade como meio para prover o educando da possibilidade de acesso e aprendizagem, além de outros temas relacionados a defesa de direitos e organização de dados estatÃsticos para planejamento das polÃticas públicas locais. Tudo depende da mobilização social de exigir que isso aconteça. Em São Paulo, temos a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e agora foi criada a Secretaria Estadual da Pessoa com Deficiência, ganhos polÃticos de visibilidade do segmento. Há sempre uma preocupação de não se criar sistemas especiais para atender pessoas com deficiência como se tão diferentes elas fossem que não pudessem ser atendidas… Mas, ao mesmo tempo, é necessário dar visibilidade à s pessoas com deficiência. Eu encaro a criação dessas secretarias especializadas como um fato positivo no sentido de se dar importância polÃtica à pauta das pessoas com deficiência, mas não acredito que seja só lá o lugar onde as pessoas com deficiência encontrem guarida para exercÃcio de seus direitos. Do contrário, estaremos centralizando e tirando a responsabilidade que é da Secretaria da Educação, da Saúde, do Trabalho, do Transporte, entre outras, para depositar numa única secretaria que terá muito mais demanda e menos força e recurso para administrar. Órgãos especÃficos devem ser articuladores e operacionalizar tudo isso de forma transversal, para garantia da acessibilidade e dos demais direitos, senão estaremos criando sistemas isolados.
Breve CurrÃculo
LaÃs Vanessa Carvalho de Figueirêdo, é Advogada Sócia de Figueirêdo Lopes, Golfieri, Toledo e Storto Advogados. Mestranda em Direito das Relações Econômicas e Sociais pela PUC-SP. Professora nos cursos de pós-graduação do SENAC/SP, COGEAE/PUC/SP e UNISANTOS. Conselheira Suplente pela OAB Federal no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – CONADE (gestão 2006-2008). Vice-Presidente da Comissão Especial dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Conselho Federal da OAB. Integrante do Núcleo de Estudos Avançados do Terceiro Setor (NEATS) da PUC-SP e da International Society for Third Sector Research (ISTR). Co-correspondente pelo Brasil da International Center for Non-profit Law (ICNL) para o projeto United States International Grantmaking (USIG).
Mais Informações
Para ler o primeiro bloco de perguntas feitas a entrevistada sobre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas e seu Protocolo Facultativo, acesse o site da Revista IntegrAção http://integracao.fgvsp.br/ano11/06/opiniao.htm
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